Redimindo Asimov
Fim de semana prolongado em Sampa, dois excelentes filmes na parte da noite mas muito trabalho durante o dia, produzindo material para um website e traduzindo um livro (mais sobre isso em breve). Na ida e na volta de ônibus (tenho um pequeno problema com aviões - nada grave, apenas um ligeiro desconforto entre o momento da decolagem e o do pouso), aproveito para cochilar ou de preferência ler. Como todo bibliófilo que se preza, não consigo ler menos de três livros ao mesmo tempo (atualmente esse número caiu para dois, mas só porque não costumo contar os livros lidos estritamente para trabalho). Tirei estes últimos dias para redimir uma figura que andava meio caída no meu imaginário: Isaac Asimov. Morto em 1992, esse escritor russo naturalizado americano se tornou sinônimo de ficção científica...
...e aí é que está o busílis, como dizia aquele personagem de Rubem Fonseca. Depois de escrever centenas de histórias (publicou ao todo mais de 400 livros, entre ficção e não-ficção) e de ajudar a moldar o gênero da FC, Asimov acabaria sendo crucificado pela crítica por escrever histórias dando ênfase às idéias e apresentando personagens rasos como um pires. Em diversas entrevistas, e na autobiografia
I, Asimov, publicada logo após sua morte, ele próprio declararia não entender o porquê dessa exigência, explicando seu método com a metáfora do vitral. Para ele, existiam dois tipos de escritores: os que construíam janelas com vidraças e os que as faziam com vitrais. O vitral é belo e altamente elaborado, mas não deixa passar a luz. A vidraça não tem nada de especial, mas a luz a atravessa por inteiro. Asimov tinha o maior orgulho em ser um construtor de vidraças.
O que, no fundo, no fundo, nunca passou de uma grande brincadeira do Bom Doutor, como era carinhosamente chamado pelos fãs (era PhD em Bioquímica): em
O Fim da Eternidade e
O Despertar dos Deuses, ele provou até mesmo para a crítica que sabia escrever de maneira, digamos, literariamente correta, criando personagens plausíveis e reduzindo drasticamente o número de clichês - outra coisa pela qual foi muito criticado por pura maldade, uma vez que ele próprio inventara vários desses clichês.
Pois é, e por essas e outras todo leitor de ficção científica acaba achando Isaac Asimov meio chato depois de algum tempo e meia dúzia de livros. Eu também pensava assim até outro dia, quando comecei a reler depois de quase vinte anos a obra mais conhecida de Asimov: a trilogia
Foundation. Nesses três livros escritos no comecinho da década de 50, o russo fez miséria num cenário não menos grandioso que toda a Via-Láctea, contando a história de um grupo de cientistas cujo objetivo era evitar o barbarismo da sociedade após a queda do Imperio Galáctico. Asimov não dá muita trela pra clichês nessa trilogia: os personagens são quase todos bidimensionais, com os quais não dá para se identificar, mas não é isso o que importa: o sujeito consegue nos levar por uma teia de tramas e planos na qual não faltam ação, aventura, humor... e uma grande sacaneada na mentalidade científica em geral, que tende a ver as coisas em preto-e-branco, ignorando o fator humano (hoje em dia essa mentalidade está mais presente nos economistas e nos políticos, mas não vamos estragar o espírito deste post).
Foundation teve duas traduções em português: uma nos anos 60, pela extinta editora Hemus, e outra, do começo dos anos 90, pela Record. Não li nenhuma das duas, embora fique a impressão chata de que a Record pode ter descuidado um pouco da tradução, a julgar pelo cacófato do título - "A Fundação" não é mole, ainda mais quando se sabe que o original não tinha artigo na frente do substantivo. Mas para não dizerem que tenho
esprit de porc ao invés de
esprit de corps, recomendo mesmo para quem não sabe inglês. Vale a pena, até para tirar a má impressão do velhinho: Asimov acabou virando o Jorge Amado da Ficção Científica. O que não deixa de ser uma ironia extrema, porque o bom baiano não gostava desse gênero, por demais escapista, segundo ele. Ambos, no entanto, acabaram sendo jogados no mesmo saco-de-gatos literário por conta de uma crítica impiedosa e, desconfio, pseudo-intelectual.